Análise das singularidades da obra “O
beijo no asfalto” e sua adaptação para o cinema
Resumo:
Este ensaio tem por objetivo analisar a obra
de Nelson Rodrigues(O Beijo no asfalto) bem como a sua adaptação para o cinema.
O presente trabalho analisará as particularidades que compõem a obra original e sua adaptação,
apontando diferenças que caracterizam ambas obras, bem como a intencionalidade do autor .
Palavra chave:
Cinema
brasileiro e a crítica à sociedade
Introdução
A preocupação de se entender as relações
entre cinema e literatura é muita antiga sendo que é comum se procurar , na
adaptação, sinais de fidelidade para com a obra original e assim se fazer comparações entre ambas. Para muitas
pessoas qualquer vestígio de diferença
pode ser encarado como desvio, e consequentemente ,a adaptação é vista como um
trabalho inferior. Para Marcel Silva que escreveu sobre o assunto, a adaptação
cinematográfica é um processo
intertextual, anti-hierarquico, plural ,hidibrizante, multicultural e
canibalizante, isto é ,a adaptação não tem por obrigação ser uma cópia da obra
original pois cada uma tem sua particularidade. A obra original é escrita num
determinado período, influenciada por uma série de códigos de representação e por momentos históricos delimitado, do mesmo
modo que a adaptação fílmica. Há muitas diferenças entre a linguagem literária
e a linguagem do cinema. Por exemplo, na linguagem literária é o leitor que faz a maior parte do trabalho,
imaginando as características do personagem, o cenário em que os acontecimentos
se desenrolam; já os cineastas (roteiristas)precisam fazer grande parte do
trabalho do leitor, isto é, tem que colocas nas telas em mínimos detalhes
aquilo que a linguagem literária não
pode fazer. Os aspectos físico cor, tamanho , paisagens dos lugares das cenas,
devem ser postas em imagens e som. O cineasta tem que tomar decisões
antecipadas pelo autor ou leitor, mas esse trabalho é muito complexo e requer
paciência, imaginação e criatividade.
Para Jorge furtado a transposição da literatura
para a linguagem áudio visual envolve os aspectos estético e ético. No que diz
respeito ao aspecto estético cabe lembrar que na linguagem áudio visual toda
informação deve ser visível ou audível. Em relação ao aspecto ético leva-se em
consideração que, em muitas circunstancias, a imagem vem substituindo a
palavra. Segundo Jorge, uma sociedade baseada no texto escrito seria aquela em
que a lógica, a ordem e o contexto predominam, mas uma sociedade baseada em
imagens, seria aquela em que a lógica e o contexto perdem terreno para gratificação imediata ,o cinema e a televisão criam imagens , a
literatura cria imaginação, afirma Jorge.
A obra o beijo no asfalto é um conto de
Nelson Rodrigues que ele mesmo
classificou como uma tragédia carioca, tragédia é um gênero que tem como
característica um final doloroso. O herói comete um ato vil e por causa disso
ele enfrentará dor e sofrimento, isto é, o castigo e em seguida a morte. Arandir é um exemplo desse herói e o ato vil
que ele comete (o beijo no asfalto) motiva todo o seu sofrimento. O herói ao
cometer o ato quebra um tabu com a sociedade burguesa. Um repórter oportunista
inescrupuloso faz Arandir e sua família sofrerem e finalmente ele é assassinado
pelo sogro que movido por ciúmes comete o crime.
Nelson põe em evidencia as consequências do que seria um ato
vergonhoso. As atitudes da mulher (Selminha) revela ser ela uma pessoa não tão
apaixonada pelo marido como a personagem mesmo declarara, a cunhada (Dália) se
mostra apaixonada por Arandir; o sogro ,homossexual (Aprigio), também é
apaixonado pelo herói. Tal circunstancia
põe em evidencia que a família direta ou
indiretamente ,participa do ato delituoso.
O leitor ao se deparar com obra deve estar
previamente instruído sobre o gosto pelo grotesco da parte do autor que
desenvolve situações e personagens que
chegam a ser surreais, um pouco de psicologia será bem útil para se entender o
conto. As Características da obra São:
-Nelson
busca novas formas para o teatro nacional que se limitava a copiar e
representar o modelo europeu.
-O
autor prioriza temas desagradáveis que, em geral, chocavam a sociedade
burguesa.
-Crítica
às instituições e aos valores burgueses.
-
Fixação pela sexualidade, numa visão freudiana do tema
-Obsessão
pela morte.
-Caricaturização
dos personagens, tornando-os , muitas vezes grotescos.
-Frases
curtas, reticentes, incompletas por representarem diálogos , feitos para serem
ouvidos e não lidos. Vejamos os personagens
principais: Arandir ,Jovem funcionário público, recém-casado, ingênuo e
aparentemente bondoso, Aprígio-sogro de Arandir e viúvo, Amado
Ribeiro-jornalista inescrupuloso e oportunista, Cunha- delegado violento e
estúpido, dominado pelo repórter, Selminha-Mulher de Arandir ingênua e
insegura,Dália-irmão mais jovem de Selminha- apaixonada pelo cunhado.
A obra transposta para o cinema que tem a direção de Bruno
Barreto e adaptação de Doc Comparato, é um filme que tenta levar ao
conhecimento dos telespectadores a obra de Nelson. Para aqueles que nunca leram
o conto, o filme mostra-se recomendável. É claro que a obra não chega a ser uma
cópia fiel da original e nem poderia ser. Para aqueles que têm contato com o
conto e o filme, notará muitas diferenças
e isso é bastante natural em qualquer processo de adaptação. Por exemplo, o
filme, diferentemente da obra original, começa mostrando a cena do
atropelamento mas não chega a mostrar o beijo que Arandir (interpretado por Ney
Latorraca)dar na boca da vítima. Na obra original o primeiro ato começa narrando os acontecimentos no distrito
policial –sala do delegado Cunha-veja o recorte da cena do filme:
Adaptação
fig 1
Em
relação ao conto ,como já comentamos,
podemos notar algumas diferenças,
vejamos alguns trechos da obra e em seguida comparemos com as cenas do filme:
Primeiro
ato
(Distrito
policial correspondente à Praça da Bandeira. sala do delegado Cunha . Este, em
mangas de camisa, os suspensórios arriados ,com um escandaloso revolver na
cintura.
(Entre
o detetive Aruba.)
Nesta
pequena descrição, podemos em contraste com a cena do filme uma diferença e diz
respeito ao “escandaloso revolver “ na cena do filme ele não existe. Outra
diferença é o suspensório,
pois na adaptação os mesmos não se encontram arriados. Não abordaremos
exaustivamente tais diferenças pois não é o intuito deste ensaio .Como já foi
dito, uma adaptação seja ela qual for é antes de tudo uma obra hidibrizante,
canibalizante .
Portanto não devemos nutrir expectativas de que a
adaptação deve ser uma cópia fiel da original. Veja logo abaixo o recorte da
cena do filme:
Em relação aos diálogos no filme , tanto o
diretor como o ator Daniel filho, afirmam ter reproduzido fielmente o texto do
conto de Nelson Rodrigues. Na verdade, quem
assiste o filme atentará para muitas
omissões nos diálogos das personagens ,entretanto, o enredo e o sentido da peça
não são comprometidos. O roteirista do filme (doc Comparato) mostra-se bastante
competente ao pensar e tentar criar cada detalhe, de forma que o telespectador
tenha a sensação de estar diante da obra original. O individuo que talvez
encontre dificuldade com literatura, ao se deparar com a adaptação, terá a oportunidade de acesso
à obra ,e mais do que isso, os recursos utilizados no filme (som imagem, cores
)faz da adaptação uma obra singular.
Mas afinal de contas por que o “ o beijo no
asfalto escandaliza”?Arandir merece ser punido pela sociedade? O que ele traz
consigo é capaz de desequilibrar as estruturas
de uma socieda-
de
?Tais dilemas são representados com grande competência por todo o elenco principalmente
,
Ney Latorraca (Arandir) , Daniel Filho, (Amado
Ribeiro)Oswaldo Loureiro (delegado Cun-
ha)
que com brilhantes atuações evidenciam
conflitos-não de cinema –mas da alma humana. Apesar de muitos críticos
afirmarem que o poder da imprensa é o tema principal da obra ,podemos constatar
que outros temas são abordados, por exemplo, a angustia humana diante da vida e
da morte ,amores proibidos, conflitos sexuais e antes de tudo a hipocrisia de
uma sociedade burguesa defensora de valores que ela mesma não vivia.
O ato de Arandir , que é interpretado por Ney
Latorraca , o transforma em um monstro, uma
aberração ,diante uma sociedade que puni tudo
e todos que se afastam ou transgridem a suposta normalidade e a ordem social.
Os monstros são criaturas que tem sua origem no fascínio e temor que o ser humano
tem do desconhecido, isto é, aquilo que é diferente ,que foge às regras sociais
é visto como uma ameaça uma aberração e portanto deve ser punido. Arandir é um
monstro e sua monstruosidade foi o beijo no asfalto, ou seja ,o beijo que ele
deu no homem vítima de atropelamento. É por
isso que ele merece ser punido, e assim o nosso herói sofre até resultar em seu
assassinato pelo sogro Aprigio, interpretado por Tarcisio Meira. Os monstros
precisam existir para que assim a humanidade se convença da sua própria normalidade.
Olhando para os monstros o homem consegue
se ver o oposto ,mas na verdade tais monstros vivem bem no íntimo de cada um de
nós como no conto da Bela e a fera. Veja o dialogo e um recorte da cena que
ilustra bem tais conflitos, os
acontecimentos se passam no distrito policial na hora em que o delegado Cunha e
o repórter Amado Ribeiro interrogam Arandir:
( Amado
)
(Exaltadíssimo)_
E você olha. Fazer isso em público! Tinha gente pra burro lá. Cinco horas da
tarde. Praça da Bandeira. Assim de povo. E você dá um show! Uma cidade inteira
viu!
( Cunha)
(Aos
berros)_ Você não perdeu. Você jogou fora a aliança!
( Amado)
(Furioso)_
Escuta! Se um de nós, aqui ,fosse atropelado. Se a lotação passasse por cima de
um de nós (Amado começa a rir com
ferocidade )_Um de nós .O delegado. Diz pra mim? Você faria o mesmo? Você
beijaria um de nós rapaz? (Riso abjeto. Arandir
tem um repelão selvagem).
fig3
Nesta cena Arandir fica subjugado pelo interrogatório
leviano do delegado Cunha e do repórter
Amado Ribeiro. Ambos demonstram uma profunda inquietação com o ato de Arandir.
Tal inquietação irá contagiar quase todos os personagens e por conta disso o
nosso herói sofre como um cordeiro que terá de ser sacrificado para expiar os
pecados de todos.
Tal característica na obra é própria de Nelson
Rodrigues que demonstra em seus contos uma preocupação em por em evidencia
temas desagradáveis mas que também são, na verdade ,uma crítica às instituições
burguesas. Tais conflitos se desenrolam em toda obra caracterizando os dilemas
de uma sociedade hipócrita e tirana. Nelson em sua obra a denuncia duramente e
põe em evidencia os seus valores e vícios. A sexualidade é mais uma vez
encenada na adaptação de uma forma singular. A homossexualidade é tratada de
uma forma bastante impactante pois é ela que vai revelar os conflitos ocultos
de alguns personagens .Tal tema sempre foi e ainda é algo desafiador para
sociedade que por vezes se mostra tão rígida ,fundamentalista ao mesmo tempo
fragilizada. Tal fragilidade é devido extrema
necessidade de normalidade e segurança que por muitas vezes tem se
revelado na historia da humanidade. Como já foi dito, o ser humano precisa se
deparar com seus “monstros” para se se convencer da própria normalidade. Tais
monstros serão sempre seres que transgridem de alguma forma os padrões de
normalidade, as conveniências, as crenças de determinadas comunidades e que por
isso devem ser hostilizados por todos e
até mesmo destruído . Arandir se enquadra nestes aspectos ,pois o seu
ato (o beijo no asfalto) choca toda uma sociedade ,e desencadeia uma série de acontecimentos
que terminará na morte de nosso herói ,que por sinal ,será assassinado pelo
próprio sogro. Este, por sua vez,
surpreende os telespectadores declarando o seu ciúme e amor por Arandir.
Vejamos os diálogos da cena :
A
cena se passa na rua, logo após Aprígio ter encontrado Arandir com Dália no
motel . Os dois travam uma discursão. Aqui veremos um trecho desse dialogo:
Aprígio-Você
era o único que não podia casar com minha filha! O único!
Arandir
(atônito quase sem voz) — O senhor me odeia porque deseja a própria filha.
É
paixão. Carne. Tem ciúmes de Selminha.
Aprigio
(num berro) — De você! (estrangulando a voz) Não de minha filha. Ciúmes de
você.
Tenho!
Sempre. Desde o teu namoro, que eu não digo o teu nome. Jurei a mim mesmo a mim
mesmo que só diria teu nome a teu
cadáver. Quero que você morra sabendo. O meu ódio é amor. Porque beijaste um homem
na boca? Mas eu direi o teu nome. Direi teu nome a teu cadáver.
( Aprígio atira a primeira vez. Arandir cai
de joelhos. Na queda ,puxa uma folha de jornal, torcendo-se abre o jornal, como
uma espécie de escudo ou bandeira.
Aprígio
atira novamente, varando o papel impresso. num espasmo de dor, Arandir rasga a
folha. E tomba, enrolando-se no jornal. Assim morre.)
Aprígio — Arandir (mais forte) Arandir (um
último canto) Arandir.
É
claro que há algumas diferenças no que diz respeito à obra original e a
adaptação para o cinema. Por exemplo, no filme, Aprígio só atira uma única vez
e não há nenhuma referência a jornal, nem muito menos o fato de Arandir ter
morrido enrolado nele.
Com essa obra Nelson Rodrigue revela toda a sua genialidade ao público; e ao
contrario do que se costuma a buscar nos cinemas( filmes de romances fúteis,
enredos feitos para agradar), Nelson choca os telespectadores e os leitores
pondo em evidência os vícios de uma sociedade hipócrita ,recalcada e
fragilizada.
fig 4
Conclusão
Foram analisadas neste trabalho, as
características da obra original e sua adaptação, levando-se em conta que cada
obra tem suas particularidades. Tais diferenças não devem ser encaradas como
defeitos, já que, qualquer adaptação para o cinema, é um processo que não se
pode ter meramente como parâmetro, a fidelidade para com a obra literária.
A obra O beijo no asfalto, traz um ruptura
com o cinema importado e faz uma denuncia a todo um sistema burguês, defensor
de valores frágeis .Nelson permite que tal sociedade se veja e tome conhecimento
dos seus vícios .O autor usa como espelho a sua própria obra ,para assim, pôr
em evidencia os dilemas da alma humana. Os conflitos presentes tanto na
literatura como no filme trazem temas como família, sexualidade, incesto, morte,
que tiram o telespectador ou o leitor da
sua zona de conforto, para que assim, ele possa refletir sobre a sua própria
condição de ser humano.
Bibliografia
FURTADO, Jorge .A adaptação literária para o cinema
e televisão
RODRIGUES,
Nelson. Teatro completo. 2.edição Rio de
Janeiro: Nova Fronteira (Biblioteca luso-brasileira, Série brasileira
SILVA,
Marcel. Adaptação literária no cinema brasileiro contemporâneo: um painel
politico
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